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I CLBNA - 1° Lugar / Crônicas

Eliane de Som

O nome "Som" soa engracado em Português, mas na verdade tem um significado muito bonito em Bengali, a língua de origem do seu marido - que é indiano, naturalizado alemão. "O nome "Som", quer dizer "Lua" em Bengali. Quando conheci o meu marido, gostei do nome. Naquela vez, me vi andando pelas ruas de Calcutá ou de Nova Delhi, com um monte de filhos e ouvi meus possíveis vizinhos, dizendo: - "Aquela é a senhora Faganello da Lua. Os filhos jogam futebol e não hóckey, como os indianos." Achei bonito.", relembra Eliane. Lá no interior de SC, ela é a Nane Faganello.

 

Os seus autores preferidos são muitos. Nane gosta muito da literatura portuguesa e da italiana. "Aliás, acho que em termos de literatura e de culinária, os italianos e os portugueses sao imbatíveis", comenta. "Gosto muito do José Saramago e de um italiano chamado Daniele del Giudice. Também gosto do Dino Busatto, Italo Calvino, Enzo Biagi, Dario Fo, só pra citar alguns. E atualmente tenho me deliciado com um autor angolano chamado José Luandino Vieira. Ele escreve em Português de Angola e a Língua soa deliciosamente estranha aos nossos ouvidos. É um estranho que surpreende e fascina".

 

Eliane Faganello nasceu em 1964, ano do início da ditadura militar. Entrou na Universidade no fim da ditadura e decidiu ir embora do Brasil quando o ex-presidente Collor foi eleito. Fez um curso na Argentina, onde conheceu seu marido, que também fazia um curso em Buenos Aires. Daí para a Alemanha foi bem rápido. Tirou o passaporte italiano, herdado dos seus avós, e veio para Europa, para conhecer. Acabou gostando, casou e ficou por aqui. "Gosto muito do Brasil, mas também gosto muito da Alemanha e me sinto completamente integrada por aqui. Acho que os maiores problemas do Brasil são a violência e as drogas, que hoje em dia não estão somente nas grandes cidades, mas fazem parte do dia-a-dia dos brasileiros", comenta.

 



Os Números da Alma

Dois de dezembro de dois mil e dois. Desço em Düsseldorf com doze minutos de atraso. A coincidência das iniciais e a mentalidade superticiosa do país que carrego dentro de duas pesadas malas, me levam a concluir que este é o dia "D" de minha vida.

 

Habituada a um país onde a pontualidade não é medida em relógios, mas em variáveis subjetivas entre o tempo e o espaço, os doze minutos de atraso num vôo que vem do Rio de Janeiro, me parecem pouco significantes.

 

Acostumada a calcular atrasos em horas, dias, meses e em anos brasileiros, os doze minutos perdidos num avião, evocam-me apenas o sufixo "mente", incluído junto à palavra "pontual", que a transformará de adjetivo em advérbio, numa dessas melodiosas operações asseguradas pela Língua Portuguesa.

 

O nervosismo e a agitação dos passageiros pelos anunciados doze minutos de atraso, ainda me parecem parte de um quadro que liga a vontade de chegar às necessidades fisiológicas de esticar as pernas e respirar o ar puro do lado de fora. Demorarei alguns anos para compreender o real significado desses doze minutos e só então entenderei o sorriso condescendente do passageiro ao meu lado e o simpático comentário: - " Chegamos do Brasil!", que despertará risos de outros não menos apertados passageiros, ocupados em gastar os últimos doze minutos, lembrando do lugar de onde vêm e para onde desejarão voltar.

 

Cinza é a cidade e me constrange não vê-la repleta de neve, como no cartão-postal que enviarei, dois dias depois, desejando boas festas àqueles que ficaram. Cinza é a cidade onde chego e a falta de neve me faz escrever poucas linhas. Gostaria de escrever "a neve é linda, gente" e então teria a certeza de encontrá-los sorrindo, no final da tarde, sentados sem camisas no mesmo lugar onde os deixei e onde os encontrarei, anos depois, como se tivessem permanecido estáticos, rigorosamente parados na mesma posição, enquanto eu me perdia por caminhos cinzentos.

 

Cinza-pálido, quase cor de areia de construção, escreverei mais tarde, no verso do enganoso cartão, que mostra a paisagem repleta de neve. Não da cor de areia dourada das longas faixas de praia, nas tardes de outono, mas da areia transportada em cargas, não se sabe ao certo vinda de onde e que se tornará, em breve, uma imensa construção de concreto armado que abrigará pequenos ninhos familiares, a serem pagos com o volátil décimo-terceiro salário, recebido no mês de dezembro.

 

Poucas vezes tinha ouvido falar desta cidade cinza, onde chego com doze minutos de atraso. Três vezes, no máximo. A primeira foi na capa de um livro que nunca lí, mas que ainda hoje o título me desperta profunda curiosidade. Não é um título comum "O Vampiro de Düsseldorf", nem um título desses que se ouve todos os dias e assim como "O Padre de Jacarepaguá" encantou, por muitos anos, a minha existência. E então me pergunto se não foi, em parte, o título de um livro nunca lido que me fez tomar este avião, que chega com um modesto atraso de doze minutos, no país onde aprenderei a calcular uma nova equação.

 

Outras duas vezes tinha ouvido falar desta cidade cinza, onde um futuro marido me espera, ansioso pelos doze minutos não previstos na conta. Mais duas vezes a tinha localizado no mapa, não por interesse, mas simplesmente porque me fascinam os mapas e mais ainda me fascina a precisão da cartografia, matéria a quem foi negado, desde o início, o direito de escolha.

 

Presa na absoluta necessidade de colocar montanhas, rios e vales em seus devidos lugares, a cartografia jamais pôde experimentar os prazeres de alterar a posição daquilo que se propõe a descrever, tampouco pôde correr os riscos de perder seus leitores em caminhadas sem voltas, como faz sua colega, a literatura e como fazem tantas outras matérias menos presas à exatidão e mais propensas a confundir os caminhos daqueles que as tentam seguir.

 

Com doze minutos de atraso, numa tarde cinza-escura e ainda sem mapas, parto num trem moderno, em direção à minha nova vida. Vinte e oito minutos até a estação central, mais oito até a porta de casa e mais dois ou três para subir as escadas, dependendo do número de degraus e do número de beijos a serem trocados pelo caminho. Ao todo, trinta e nove minutos, calcula um cérebro ágil, acostumado às oscilações econômicas de um país inflacionário. Trinta e nove minutos para uma nova vida, descontados aqui os doze de atraso do avião.

 

Cinza-escuros são os trilhos das linhas de trem que acompanham a viagem até a minha nova vida, onde intermináveis construções de concreto me impedem de ver voláteis crianças que deveriam correr em uniformes coloridos de uma seleção que já não vence há nove jogos, assegura um jornal aberto em minha frente, que leio num parco alemão, com sotaque do sul do país e no qual permaneço compenetrada até chegar ao minúsculo apartamento de duas peças, que a partir de hoje chamarei de lar.

 

Quarenta e seis metros quadrados de espaço me são garantidos neste país, logo na chegada. Corrijo: vinte e três. Porque aqui precisaremos incluir uma nova operação, diria, se estivesse por perto, um professor de alguma ciência exata. Mas é pouco provável que esteja por perto, o professor. A ciência, esta sim, estará sempre presente neste país repleto de cálculos, onde, doze minutos atrasada, começo minha nova vida.

 

Dentro das operações matemáticas, a divisão é a que mais me fascina devido à grande margem de erros e aos riscos a que está sujeita. Basta pensarmos nos cálculos apresentados pela distribuição de renda no planeta e logo veremos que a divisão nem sempre é respeitada em sua lógica interna e muito menos, é operação confiável.

 

Também não é operação exata quando trata da distribuição de terras e aí qualquer um pode enxergar, de longe, que a divisão vale muito pouco dentro de uma sociedade acostumada a multiplicar. Mas não serei eu, aqui destes longes, a semear a discórdia entre as operações matemáticas, a fomentar brigas entre o mais e o menos, entre o multiplicar e o dividir.

 

Vinte e três metros quadrados de espaço me foram garantidos, logo na chegada. O restante terei que conquistar, resmungo eu, enquanto fecho, lentamente, os olhos cansados da viagem que me trouxe a este mundo de exatidão, de certezas e de complexos cálculos, que corrigirão a equação de minha vida.

 

Cheguei e vou ficar, tento crer e me enrolo num cobertor, que pela qualidade, poderia pagar a metade de uma outra viagem. Pelo menos seis mil quilômetros investidos num cobertor, calculo eu, enquanto fecho os olhos, ainda ouvindo o ruído do avião que me trouxe, atrasada, à minha nova vida. Uma vida onde aprenderei a medir, a quantificar e a transformar as dúvidas, em certezas.

 

Duzentos e dezesseis passos até a parada de um ônibus que chega, pontualmente, às dezessete horas, somados aos dezenove minutos até os quarenta e seis metros quadrados, divididos por dois, de área do apartamento onde vivo, formam uma nova equação que atravessa lentamente os vagos limites de uma personalidade que já não é mais a mesma e que se transforma, dia após dia.

 

Não perceberei o exato momento em que os números invadirem minha alma, mas os verei adquirindo vida própria e seguindo meus passos, a me espreitarem atrás das portas, no fundo da estante, escondidos no ar. E atônita, os encontrarei mergulhados na banheira preenchida com cento e vinte e seis litros de um líquido claro, dentro da qual passarei dias, fazendo contas descontadas, sem dividir e sem multiplar, sem mais e sem menos.

 

Não incluirei no cálculo, os litros do líquido transparente que escorrerem de meus olhos.Tampouco a solidão das noites frias e os flocos de neve que começarem a cair e que, por estarem atrasados, não puderam entrar no cartão que teria permitido sorrisos a rostos morenos, sentados sem camisas, num lugar onde ainda me esperam. Também não calcularei os dias que faltam para voltar, porque se assim o fizer, passarei a contar os passos em círculos que darei, as noites que não dormirei e o número de quilômetros que percorrei até chegar à clínica de paredes brancas, onde começarei, atrasada, uma nova vida.

 

O nervosismo e a agitação dos dois pacientes que dividirão comigo os dezoito metros quadrados do quarto número duzentos e doze, ainda me parecem parte de um quadro passageiro de depressão. Mais tarde, a ciência psiquiátrica se encarregará de codificar, descrever e definir o tratamento.

 

Demorarei alguns meses para compreender o real significado daquela clínica, onde doidos descalços, dementes desorientados e drogados distraídos, andam, como eu, durante madrugadas frias, esperando a dose de sedativos que lhes permitirá dormir.

 

Dia dois do mês dois de dois mil e três. Deixo a clínica e desço pela direita. A coincidência das iniciais e a mentalidade superticiosa do país que carrego dentro de duas pesadas malas, me permitem concluir que este é o dia "D" de minha vida.

 

Ando devagar e piso leve no chão de azulejos brancos. Do lado de fora, respiro fundo, firmo o passo e já posso brincar com uma nova equação: - "Alemanha, noves fora, zero."

Fotos: Nane Faganello
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I Concurso Literário

Brasileiros-na-Alemanha.com


Crônicas
1. Lugar


Os números da alma
Nane Faganello
2. Lugar


Simone Horvatin
3. Lugar


Débora Dornelas
Menção Honrosa


Ilaine Kunz
Poesias
1. Lugar



"Deth Haak"
2. Lugar


"Ras Adauto"
3. Lugar



Ana Cláudia de Souza

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